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terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

9ª sessão do curso sobre o Antigo Egito

 

A VIAGEM DE EÇA DE QUEIRÓS E DO CONDE DE RESENDE AO EGITO

 

Em outubro de 1869, Eça de Queirós, então com 23 anos, acompanhando o seu amigo conde de Resende, na altura com 25 anos, partiram de barco para o Egito a fim de assistirem à inauguração do canal de Suez. Os dois jovens saíram de Lisboa e desembarcaram em Alexandria a 5 de novembro, seguindo de comboio para a cidade do Cairo, a capital do EgitoEm Alexandria recebeu Eça a primeira grande desilusão do seu percurso oriental: não gostou da cidade, e reconheceu que apenas se sentiu atraído por algumas «curiosidades clássicas»: a «coluna de Pompeu» e as ditas «agulhas de Cleópatra» (a primeira é uma coluna erguida no reinado do imperador Diocleciano, e as segundas são obeliscos erguidos por Tutmés III à entrada do templo de Heliópolis e levados depois para Alexandria durante o reinado de Augusto).

Descrevendo a sua viagem de comboio através do Delta, entre Alexandria e o Cairo, pela via férrea montada pelos ingleses, Eça alude com bastante afeto aos habitantes do Egito, com referências ao felá, o camponês do Nilo, fazendo argutas comparações entre os Egípcios da sua época e os dos tempos faraónicos, e vai tecendo irónicas observações acerca da situação da mulher no Egito e no mundo do Próximo Oriente e seus costumes, não deixando adrede de criticar com veemente adjetivação a administração corrupta daquele tempo, comparando-a com a eficácia do regime faraónico, louvando o rei Amenemhat III.

Nos arredores do Cairo Eça e o conde de Resende visitaram Heliópolis, onde ainda hoje está o obelisco de Senuseret I, da XII dinastia, as ruínas da cidade de Mênfis, e a região tumular de Sakara, com o complexo funerário do Hórus Djoser, da III dinastia (que Eça não menciona), o Serapeum (os túmulos dos bois Ápis, animais sagrados do deus Ptah) e o túmulo do funcionário Ti, da V dinastia, para além das célebres pirâmides de Guiza. O momento alto da sua incursão pelo passado faraónico foi a visita ao planalto de Guiza, para admirar as gigantescas pirâmides que se erguem no local, e às quais dedicou nas suas notas de viagem sugestivas descrições.

Também merece destaque a experiência fruída na visita que fizeram ao antigo Museu do Cairo, para apreciar as «vetustas antiguidades egípcias, velhas de milhares de anos». Nesse edifício, sito na zona de Bulak e hoje desaparecido, o egiptólogo francês Auguste Mariette (que Eça conheceu numa sessão da Ópera do Cairo) instalou um acervo de antiguidades egípcias, inaugurado em 1863, e que o nosso escritor conheceria seis anos depois, deixando-nos dessa visita uma interessante descrição.

Para Eça, o Cairo era «o centro do Egito e a sua maravilha». Impressionou-o o cosmopolitismo da metrópole cairota (na altura com 300 000 habitantes), tendo visitado os reduzidos vestígios coptas e os mais notáveis monumentos islâmicos na Cidadela e nas zonas em redor, como os túmulos dos califas (hoje numa zona cairota conhecida como «cidade dos mortos»), a vetusta mesquita de Amr, a mesquita de Ibn Tulun e a Universidade de Al-Azhar, junto do bazar de Khan el-Khalili.

A inesquecível estada dos dois amigos no Egito durou menos de dois meses, mas o sentimento de afeto e nostalgia que ficou enraizado em Eça depois da sua jornada nilótica está bem ilustrado nas palavras que deixou numa das páginas dos cadernos de viagem: «Por vezes sinto o desejo de ficar aqui, ter um búfalo, uma mulher egípcia, descendente dos velhos donos do solo, e lavrar o meu campo no meio da serena paisagem do Nilo»

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

8ª sessão do curso sobre o Antigo Egito

 

«As ciências no Antigo Egipto»

Doutor Telo Ferreira Canhão

É um dado adquirido que a Grécia antiga foi fundamental para a construção da civilização e da consciência do mundo ocidental. Foi na Grécia clássica que o pensamento racional se impôs e que a filosofia nasceu como alternativa às crenças mítico-religiosas ancestrais. Uniformizaram-se sistemas de conhecimento, submetendo as causas primeiras de cada um aos vários pressupostos e métodos gerais da ciência, assentes em dois conceitos fundamentais: o antropocentrismo e o racionalismo. É esta a sua originalidade: o homem como centro de interesse e de especulação, e a prioridade da razão sobre o mito. Segundo Protágoras, o homem, «medida de todas as coisas», é simultaneamente herói e destinatário dessa aventura. Mesmo assim, ainda estávamos longe do pensamento de Descartes, posteriormente desenvolvido na prática por Newton!

Contudo, os sábios da Grécia antiga iam ao antigo Egipto para aprender, pois sabiam que aí existia uma ciência venerável e um elevado nível de conhecimento, ainda que misturados com práticas mágicas e religião. Como diz Plutarco em Ísis e Osíris, «os gregos mais ilustres: Sólon, Tales, Platão, Eudóxio, Pitágoras e, segundo alguns alunos, também Licurgo, foram viver para o Egipto e chegaram a gozar de intimidade com os sacerdotes. Por isso se diz que Eudóxio ouviu as lições de Conúfis o de Mênfis; que Sólon deu ouvidos às do saíta Sonchis; e que Pitágoras conversava com o heliopolitano Enúfis.» (Plutarco, Ísis e Osíris, 10). Ficou ainda registado, por exemplo, que Platão foi discípulo de Secnúfis, de Heliópolis, e Pitágoras enunciou o seu famoso teorema quando saiu do Egipto, cerca de 520 a. C., depois de lá ter vivido alguns anos.

Ora, como o povo egípcio era pragmático por excelência, toda a sua ciência era empírica, fortemente utilitária voltada para a solução dos problemas do dia-a-dia. Por exemplo, a matemática e a geometria desenvolveram-se enquanto procuravam soluções para a medição de terras, o traçado das pirâmides ou dos templos, ou nos registos e cálculos associados ao comércio; a medicina e a farmacopeia com a necessidade de aliviar o sofrimento de quem necessitava; a astronomia por causa da premência de uma medição correcta do tempo, tão necessária à agricultura. Mas o seu conhecimento não passava de conjuntos de regras que permitiam a resolução de certas questões que, embora assentassem na observação, jamais se desligaram da religião e da magia, nunca tendo sido organizados em leis gerais.

É por isso que saberes como a geometria e a astronomia só se constituíram ciências com os Gregos, apesar de sabermos que os Egípcios e os Mesopotâmios lhes dedicaram imensa atenção. Faltava-lhes o logos (λòγος), o conhecimento racional desenvolvido a partir da observação e da experimentação, que faria com que deixassem de ser apenas colecções de regras e passassem a ser conjuntos de conhecimentos sistematizados, relacionados e explicados de forma racional, de modo a que o conhecimento das causas e efeitos permitisse a enunciação de leis gerais. Por esta razão, as leis egípcias, ainda que escritas e devidamente arquivadas, não constituíram códigos de leis como os romanos mais tarde viriam a concretizar. Os conhecimentos científicos concentravam-se nas mãos de poucos, principalmente de alguns sacerdotes e escribas, cujos papiros eram uma espécie de cadernos de apontamentos onde registavam as suas impressões, os seus raciocínios e as suas soluções, sobre o conhecimento da sua área. Temos papiros médicos (Papiro Ebers, Papiro Smith ou Papiro Brooklyn, por exemplo), papiros matemáticos (Papiro Rhind e Papiro de Moscovo, por exemplo) e longas listas de leituras astrais.

Há muitos exemplos que poderíamos integrar em diversas ciências, como a química (produção de cerveja, de vinho ou de substâncias tintureiras, de origem animal ou vegetal, por exemplo), da qual tinham um conhecimento residual nada ligado à prática desta ciência exacta, mas que segundo a opinião de alguns, foi uma ciência a que deram o nome; ou a física, onde sendo os construtores que eram, pouco mais sabemos do seu conhecimento nesta área para além de que conheciam o plano inclinado; ou, ainda, a biologia, onde a descrição minudente de múltiplos aspectos dos animais que observavam à sua volta, são insuficientes para se poder considerar a existência desta ciência natural no antigo Egipto. Contudo, na sessão em que abordaremos as ciências do antigo Egipto, iremos focar-nos na astronomia, na matemática e na medicina, aquelas que mais se aproximaram, de facto, de uma ciência. No primeiro caso falaremos do tempo e incluiremos os calendários e os relógios, para além de estrelas, planetas e constelações; na matemática, onde não descuidaremos a geometria, falaremos da numeração egípcia, das operações aritméticas como a soma, a subtracção e a divisão, de fracções, de equações, de áreas, de volumes e do valor de π (razão entre a circunferência de um círculo e seu diâmetro); por fim, na medicina e na farmacopeia, falaremos dos vários tipos de profissionais da área, dos seus conhecimentos médicos e do que faziam e usavam para curar os doentes. Alguns destes conhecimentos sobreviveram até aos nossos dias.